‘Viver é meu Vício’ (crônicas) – Leia aqui o prefácio do livro.

Prefácio – Viver é meu vício

(por Elaine Moraes, professora  e mestre do curso de Pós-Graduação em ‘Processos Criativos em Palavra & Imagem’, da PUC-MINAS)

“Esse ofício de rabiscar sobre as coisas do tempo”; dessa forma Carlos Drummond de Andrade apresenta ao leitor o exercício de escrever crônicas. O conceito parece acolher com precisão os textos de Viver é meu vício, da escritora Domingas Alvim. No conjunto de crônicas que temos aqui, as coisas do tempo se confundem com as coisas da própria vida, matéria e razão da escrita.

A cronista recolhe dos escombros, dos afetos, das lembranças e das vicissitudes a amálgama com que o texto é construído, apontando assim para a trêmula experiência do viver. Ela vai buscar, no tímido esticar de lábios, na espera de uma fila, no brincar da criança, na compra de um pastel, na recusa de um cobertor, o gesto primeiro da narrativa que se faz de palavras e também da substância viva do acontecimento.

Viver é meu vício se faz no rés-do-chão, expressão usada pelo ensaísta e crítico de Literatura Antonio Candido para falar da despretensão do gênero. No entanto, ele nos alerta que a beleza da crônica reside justamente nesse movimento de capturar o miúdo, de fazer ver o essencial naquilo que seria desimportante e dizê-lo de forma descompromissada, e, por isso mesmo, por vezes, poética.

Encontra-se presente, nas crônicas de Domingas Alvim, esse quantum satis de poesia. Algumas delas como “Queda-livre”, “Talvez eu esteja pronta” e “Sempre é tempo” se apropriam claramente de elementos como ritmo, rimas e musicalidade. Em outras, a força poética vem do montar o puro-sangue e vencer os páreos, do cuidado de não se lavar a louça com areia, do amor que arranca a pele, do voo aleatório das moscas, das esquinas de senilidade, do alimentar desnecessidades com leite morno, da escrita-rio.

Há um inventário extenso de imagens poéticas que retratam não só as coisas do tempo, mas também um modo de existir. O escritor britânico Ian McEwan já falou sobre a impossibilidade de escapar de si mesmo quando se escreve, ainda que a escrita seja ficcional, em algum momento o autor se entregaria. A cronista, definitivamente, não pretende fugir desse encontro, pelo contrário, empreende certa escrita de si, talvez buscando uma descoberta ou apenas um flerte com as expectativas de ser.

Ela registra, em suas crônicas, declarações de que é “órfã de sexo, gênero, de definições”, mas admite também que podemos ser “um bando de coisas”. A escritora pode estar jogando com o leitor, pois a narradora de primeira pessoa afirma que vem “para dizer que sou o que sou e também o que finjo ser”. Tal como no poema “Autopsicografia”, fingir-se permite vivenciar uma pluralidade de dores ou de eus, ainda que resista, em Domingas, uma voz ao fundo tecendo elogio ao “ser quem somos” e reservando dentro de si um pouco de mar.

Mas a tessitura de Viver é meu vício abriga também o outro. A cronista faz pulsar no texto a ironia ao trazer as indigências, as crianças desamparadas, as mulheres famintas ou os velhos pedintes. A visão crítica sobre as condições de existência dessas outras vidas, já naturalizadas pela sociedade, enche de peso o vício.

A escritora não poupa nem mesmo sua narradora: “Dormi com a culpa dos que não agem sobre as coisas”. Sem qualquer hesitação ou receio, o texto traz lições. Contudo, sem didatismo ou tom professoral. Se há um ensinamento, esse não parte de quem diz eu, mas desses tantos outros que habitam o viver singular da cronista. “Ela, em sua aparente miséria, entendeu que é mais fácil viver apenas com o que se precisa de fato, do que viver uma vida inteira precisando”.

Domingas ainda traz para o universo da vida, que não seria a inventada, mas aquela feita da carne do real, outros como Machado de Assis, Clarice Lispector, Maitê Proença e até uma menção ligeira a Rocky Balboa. Há um catálogo farto de referências que vão agregando sentidos aos textos. Em muitas crônicas, o leitor vai encontrar reflexões e provocações que partiram de um documentário, de uma música ou de um personagem.

O viver de Domingas é povoado de vozes, mas também de silêncios. Uma carta-crônica escrita para talvez aprender a se perdoar, a presença ausente do pai, a revelação de que o mundo é um lugar repleto de perguntas sem respostas. O leitor pode se emudecer com a percepção da narradora de que em vez do instinto, “da vida se vivendo”, nós nos descobrimos moldando a existência como algozes de nós mesmos.

O texto parece sussurrar “aquela pedra no caminho era eu”. E a escritora segue nos dando mostras do vazio e do medo que podem também fazer morada no viver. “Há vazios incompreensíveis depois dos the end que significamos do nosso modo”, “[…] desacompanhada, a vida nos soa vazia”, as pessoas-ilhas, as relações de açúcar, as agulhas enfiadas no peito, o encarar do abismo ocupam o mesmo espaço do ímpeto de se jogar, de viver o tempo que é sempre o tempo de se refazer.

E é dessa matéria contrastante de que é feita a vida e a escrita que seguramos em nossas mãos. “No bosque da leitura, as árvores que dão fruto são as do afeto”, o leitor é assim convidado a adentrar essa paisagem ancorada na afetividade, na entrega generosa do texto e de si. O livro nos coloca, enfim, de frente para esse rabiscar sobre o viver, “o mais árduo dos vícios a se largar”.

 

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