As pessoas se assustam com a minha liberdade

Fernanda Young, numa entrevista para a Leda Nagle, fala sobre quando ela começou a fazer o primeiro Saia Justa, um programa maravilhoso que está no ar até hoje, em que quatro mulheres inteligentes falam sobre temas polêmicos. Essa roteirista – da inesquecível série Os Normais – contou que, naquela época, 2002, ela já era massacrada por uma chuva de mensagens enraivecidas pelas coisas que ela dizia. E que coisas ela dizia? Coisas que uma mulher do século XXI deveria poder dizer sem causar tanto espanto se não morasse num país em que, infelizmente, para certos assuntos, a mentalidade ainda parece habitar o século XII. E quando perguntada se ela não curtiria participar novamente do programa, agora em 2018, ela disse: “não”. E o motivo de sua negação está no fato das pessoas de hoje estarem com a arma da internet engatilhada, mesmo que não haja um alvo. E quando este aparece, a ordem é: atirar primeiro, atirar depois. Em seguida, ela disse algo que me tocou: “é incrível como as pessoas se assustam com a minha liberdade.” E realmente. É incrível. É incrível que o normal ainda seja ter um pensamento anti-libertário, um pensamento pró-clausura, pró-mesmice. Um pensamento que exige da mulher uma postura de vaquinha de presépio, passiva, completamente submissa a uma ideia de submissão tão estapafúrdia quanto desumana. É incrível como no ano de 2018 nós ainda vivamos uma mentalidade medieval em vários âmbitos. É incrível como, para muitos, uma mulher não deveria poder dizer o que pensa simplesmente porque, para a cabeça pequena dessas pessoas, uma mulher não deveria sequer ser capaz de pensar. É. E o pior é que não dá nem para negar, para dizer que não é bem assim. Porque as redes sociais estão aí para nos gritar essa triste realidade que extrapola a cela do machismo. Junto com ele, tipo brinde de McLanche Feliz, vem também xenofobismo, racismo, obesismo… Faltam neoneologismos para o tanto de ismo que está surgindo por aí. A natalidade dos ismos tá tão em alta, que nem se jogassem água em toda a população dos gremlings essa reprodução seria tão exponencial. É, se continuarmos desse jeito, o único modo que teremos de sobreviver será construindo tantos muros que, por fim, voltaremos, como tantos parecem querer, para aquele esquema dos vilarejos medievais, que, aliás, já deve ser a configuração arquitetônica do cérebro de muita gente. Nessa realidade distópica, ganhar o visto de entrada para um determinado grupo vai ser algo tão exigente, que até o pessoal da maçonaria vai ficar com inveja. Para cada cidadela, um tipo ultra-específico de ser humano.Fico pensando nos check lists de aprovação. Será tipo: homem, caucasiano, 1,76 metros de altura, sem sardas, cabelo castanho claro liso com pequenas ondulações na ponta, olhos castanho-escuro de cílios escassos, 89 quilos, calçado 41, torcedor do Fluminense, que escova os dentes apenas depois do almoço e antes de dormir, que gosta de gatos, que prefere perfumes amadeirados, que acorda de mau-humor, que toma apenas um banho de 22 minutos por dia, que gosta de correr, mas somente corrida sem obstáculos, que prefere vinho à cerveja, que não gosta de chuva, que admira a lua cheia, que tem o outono como sua estação, virginiano, que não gosta de ler, mas diz que quer ser escritor, que não tem religião mas quando a coisa tá ruim faz uma fezinha em Deus, que sente fome de 4 em 4 horas, que não quer morrer antes dos 70, que acreditou em coelho da páscoa até os 6 anos de idade, que perdeu a avó materna com 13 anos, que usa óculos de aro preto, que nunca teve uma unha encravada, que ficará careca aos 38 anos, que toma café sem açúcar, que não suporta abacate, que, que, que… E aí, um dia, lá no futuro, esse homem vai acordar assustado, suando, no meio da noite. Vai olhar para o lado e ver que tudo à sua volta é nada mais nada menos do que um espelho de si mesmo. Aí, ele vai sorrir e, para não morrer literalmente de tédio, vai tentar fugir. Só que, coitado, ele era um corredor de corrida sem obstáculos, lembra? Ele não estava preparado para aquele muro tão alto que haviam construído para separar o seu vilarejo dos demais. Por fim, foi enforcado em praça pública. Afinal, os demais precisavam de um exemplo. Precisavam saber o que acontece àqueles que tentam fugir do molde. Mas antes de morrer, em sua última palavra, o homem bradou: “não se mata quem já está morto.” E morreu. Pela segunda vez. Nos bastidores, quando os guardas retiraram o pano da cabeça, se entreolharam com espanto. O homem ainda estava sorrindo.

*Crédito da foto: Eugenia Maximova.

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