Entre a cruz e o baú

Passava pela igreja e fazia o sinal da cruz. Sempre. Mantinha um respeito às tradições sem entendê-las ou questioná-las. Rezava o terço e comungava. Gostaria, mas não era tão perfeita, por isso tantas confissões na sacristia. Em casa, trancava-se no quarto e, nas malas da prima da capital, botava as mãos pra fora. Nos vestidos da outra, botava as pernas também. Um espelho era pouco pra visão de seus dois joelhos. Rodopiava. Inventava histórias e gracejos. Aceitava convites inaceitáveis e envergonhava-se de sua falta de vergonha. Ali, naquele cômodo, era seu personagem. Era aquela que gostaria de ser quando livre, mas que só libertava na reserva. Na rua, recatada. Tímida, boa filha, provável esposa. Tinha até um pretendente. Dono de chácara em outra cidade do interior. Era grosso como uma porta, mas era dono de chácara. Por ela, ele não serviria. Mas de boa filha que era, era provável que ele serviria sim. Quando a prima voltava à cidade levando seus pertences coloridos de pecado, a do interior via seus sonhos – dobrados nas malas – partindo no trem. Acenava, mais à bagagem e aos rodopios que à prima. Por vezes até chorava. A família se orgulhava: ‘Menina sentimental essa nossa!’ Ela, confrangida, guardava suas verdades com seus joelhos, debaixo das saias grossas até as canelas. Mas seus segredos não eram tão seus. Na segunda-feira, o padre já sabia. Era dia de confissão. Ela contava seus detalhes passados. Dizia as cores de suas volúpias, a altura que as barras das saias lhe subiam. Quase alcançavam seu íntimo. Contava a profundidade dos decotes e como lhe caíam bem nos seios que se eriçavam fazendo um volume com os bicos altos de menina-moça. Falava da maquiagem, dos cabelos. As perucas, tantas nela e ela em tantas. E tantos nela e ela em tantos. Mesmo sem saber como, sabia. Ninguém nasce sem os instintos da carne. Nem o padre que a ouvia atento. Ela só era quem era naqueles momentos de batons ousados. Preferia os mais vermelhos, que era pra contrastar com os lábios pálidos da rotina. Seus botões, até o pescoço, fugiam de suas casas. Baixavam-lhe até adentrarem o peito. Insinuante, o colo se projetava e uma ponta da renda do sutiã acenava. Suas pitangas pareciam, assim, mais fartas nas roupas daquela prima assanhada, decepção da família. Largara o interior pela vida da cidade. ‘Só a recebiam em consideração a tia Aninha’, – ouvia sua mãe dizer – ‘senão não passaria de uma desconhecida desonrada!’.

Depois das tardes de fantasia, saía do quarto com um riso malicioso preso no laço do coque. Na imagem da virgem no corredor, ajoelhava-se. ‘Era mesmo um exemplo de filha’, pensava a mãe. Despejava seus pecados aos pés da santa e sua culpa jogava de volta ao baú da prima, aquela desavergonhada com ares malignos da capital. Era uma cruz na sua tradição intacta. Um terço seria pra ela – a prima – que consciência de seus pecados não tinha por não conhecer das escrituras que ela tanto sabia.

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