Sobe aqui que eu te levo

          Quando eu era menor, costumava buscar meu irmão na escola, na garupa de minha bicicleta. Pedalava uns quatro quilômetros para pegar meu caçulinha. Ele tinha uns seis anos e eu uns onze. Ele saía do colégio todo suado. Eu chegava ao colégio toda suada das pedaladas. Apesar da diferença de idade e de sexo, sempre fomos parceiros.

            Depois que meu pai morreu, nos tornamos ainda mais unidos. Ele tinha três e eu oito. Percebi que minha mãe sofria um forte luto e me tornei um meio-pai para o Tétou (assim eu o apelidei). Ensinei-o muitas coisas. A andar de patins, a jogar baseball… Ensinei-o a brigar, pois lutávamos bastante em casa. Ele acabou se saindo bem. Brigava com os menininhos da sua idade, mas só para se defender. E ganhava, claro. Ele era treinado por alguém com o dobro de seu tamanho.

            Durante a adolescência dele, eu, aos dezoito anos, já havia saído de casa. Fui morar em outra cidade e, como todo jovem em busca de liberdade, esqueci a família. Mais tarde, ao regressar à casa como um filho pródigo, percebi que ele, sem saber como dizer, dizia-me que tinha sentido a minha falta. Eu não estive por perto em sua adolescência. Assim, nós nos perdemos um pouco de nós. Mas, hoje, entendo que não foi minha culpa. Eu precisava crescer só. Precisava voar sem as redes de segurança da família. Minhas asas eram grandes assim…

            Nosso contato só foi retomado quando, aos meus vinte e quatro anos (ele, vinte), viajamos juntos pela América do Sul. Ambos saindo de duas relações que não deram muito certo. Ambos sofridos.  Viajamos juntos, querendo esquecer o passado, fugindo para o futuro. Foi a melhor coisa que fizemos. Confesso que, nesse mochilão de seis meses, encontrei mais do que o fim do mundo em Ushuaia, mais do que o Glaciar Perito Moreno, em El Calafate, mais do que o divino Vale de la Luna, do Deserto de Atacama… Eu reencontrei uma das paisagens mais lindas da minha vida, há muito esquecida: o meu irmão. Reencontrei aquele caçula que, há muito, eu havia abandonado para me viver.

             Naquela viagem, naquela época, eu acreditava que tinha muito para ensiná-lo. Ledo engano. Eu é que tinha muito para aprender. Meu irmão caçula me deu algumas lições de vida. Ensinou-me a não assumir compromissos que não seria capaz de cumprir. Meu caçula me deu aulas sobre como não comprar produtos de fontes duvidosas… Assim, meu irmão me mostrou o quanto ele também me havia sido uma falta naqueles anos de vida separados. Entre irmãos que se unem por uma ausência, há uma cumplicidade maior. É como se tivéssemos que contar mais um com o outro por sabermos que não temos dois pais para nos dar a atenção de dois colos. Nós nos tornamos nossos colos, nossas redes de segurança, acima de todas as diferenças.

 A vida é engraçada… Como, depois de tanto tempo, nos fez desatar amores para, enfim, nos reatar, nos resgatar de nossas vidas fraternalmente separadas. Perdemos aquelas relações amorosas para encontrarmos uma relação muito maior: a de dois amigos-irmãos.

 Hoje, compreendo que, apesar de morarmos em cidades distantes, mantenho, do meu jeito silencioso, a minha garupa sempre vazia para, no dia em que ele precisar, eu poder dizer: vem, sobe aqui que eu te levo.

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