Não foi, mas depois foi trabalhar

       Ela não saiu da cama pra trabalhar. Teve uma preguiça do tamanho de uma formiga ruiva. Dessas que se aproveitam das coisas alheias pra sobreviver. São tão nojentas. Tanto as grandes quanto as pequenas. As maiores causadoras de infecção hospitalar, sabia? Nem ela, que ficava lá com seu teto nos olhos e os piscares mais longos que a cauda de seu vestido de noiva. Aquela coisa que já havia sido branca e que agora mofava na boca das traças de seu casamento. Se o controle da tv não mudava os canais, também não ia mais trabalhar! Pediu demissão de longe mesmo, por pensamento, sem comunicar ao escritório. Não dava mais para aquelas burocracias. E depois não quis trocar o pijama. Porque aquilo era porcaria de revista, dessas que vendem de tudo. Não era seda, tampouco a sua pele. Então não se queria mais. E daí, se o marido não a queria há muito mais tempo?! Recortou das revistas todos os rostos dos políticos. Eram fraudes! E não tinham nada que ficar jogando seus podres na sua cara! Em pensar que no primeiro dia de namoro, quando ele lhe levantou as saias, estava sem calcinha. Foi de propósito, disse. Olhou assombrado, mas gostou, tanto que não parou por ali, e deu-lhe lascívia em lábio de beijo. Não sei o que estava pensando… Como é que me casei com um homem que me deu uma caixa de sapatos pra guardar minhas roupas íntimas?! E a aliança?! Isso é joia que se dê a alguém? Pegou a mais fina! Da próxima vez quem escolhe sou eu! Mas que próxima vez?! Isso nunca mais aconteceu! As únicas bijuterias que ele me deu depois disso foram nossos dois filhos, que hoje estão perdidos por aí. Não ligam nem pra saber se estou viva. Família!, isso é que é família! E também isso eu não pude escolher! Eu que sempre tive medo de altura, arriscar-me nesse salto sem rede. Antes tivesse ficado nas minhas sapatilhas e fugido por baixo dos panos com aquele capitão fardado. Ele bem que me quis levar pra longe. Mas a moça de sobrenome aqui foi bancar a fiel pras barbas do mundo e veja só no que deu, bancando o lustrado desse homem sovina! Não trabalho mais, nem na rua nem em casa! E saiu em trajes de dormir porque a fome apareceu em sua porta, mas a vestimenta a indolência não a deixou tirar do corpo. Na padaria comprou pão e uma caixa de cerveja. Quando o marido chegou do serviço estava bêbada, dessas quase insuportáveis. Falou, gritou, vomitou. Ele a jogou no chuveiro de roupa e tudo. Em água fria, aumentou-se o volume do escândalo. Empurrou-lhe, goela abaixo, um remédio pra dormir e, antes que seu cabelo secasse, seu sono já estava confinado no travesseiro. No dia seguinte, acordou com espaço na cama e o marido no sofá da sala. Trocou de roupa e partiu de fininho. Foi a primeira a chegar no trabalho.

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