Chantilly nunca mais

Em inglês, para se dizer chantilly, usa-se a expressão “whipped cream”. A tradução disso para o português é “creme de leite batido”. “To whip”, portanto, quer dizer bater. Mas também pode ser “açoitar, chicotear, espancar”. Ou seja, para chegarmos àquela textura cremosa do chantilly, é preciso bater bastante no creme, chicoteá-lo, espancá-lo, até alcançarmos aquele outro ponto de cremosura que faz toda criança se derreter. A partir disso, fiquei pensando se essa coisa do “bater no creme para torná-lo ainda mais cremoso”, não poderia nos remeter àquela ideia de que, quanto mais uma coisa nos faz “apanhar”, maior a cremosura e o deleite que obteremos dela. E indo um pouquinho mais longe, poderíamos associar essa ideia àquela crença que temos sobre a vida a qual nos diz que se não tiver luta, se não sofrermos, se não apanharmos, se o processo do viver não nos for uma sessão de chicote, não “merecemos” aquilo que obtivemos. Será? Será mesmo que tudo, para ser mais gostoso, precisa desse sofrimento todo? Será mesmo que, se não tivermos que passar pelas mais árduas resistências, pelos maiores conflitos, pelas florestas dos agouros e pelos vales de areia movediça, não saberemos apreciar aquilo que temos? Não sei se compro esses ditos populares do tipo  “o que vem fácil, vai fácil”; “sem suor, sem glória”; “no pain, no gain”. Não sei se acho válido seguirmos afirmando essas ideias geradas pelos filmes de aventuras e pelas novelas que nos dizem que, se não tivermos uma saga cheia de espinhos, não merecemos ser heróis. Como se todo o processo de uma conquista fosse feito apenas de lutas mirabolantes e conflitos quase insuperáveis. Como se o dia a dia, mesmo com os desafios, não pudesse ser nunca um mar de rosas, mas sempre um oceano de cactos. Será que não são essas expressões, esse ditos que dizemos sem nos atentarmos para o que está sendo dito, que nos fazem ficar presos a essas crenças sem sentido? Será mesmo que, para alcançarmos a doçura, a conquista da tal “cremosura”, a vida precisa apanhar tanto? Será mesmo que tudo necessita de ser tão duro e sofrido para ser valorizado? Será que uma relação amorosa que se inicia bem e que assim permanece em um casamento saudável até que a morte os separe, sempre na maior paz e harmonia, merece ser vista como uma coisa morna, sem graça e mal sucedida? Eu sei que o conflito é aquilo que faz a ficção andar. Sem o conflito, para muitos, não existe filme, não se faz novela. Imagine uma história infantil sem nenhuma resistência, sem um vilão, sem uma madrasta má? Imagine uma novela que conte a relação de um casal que vai do início ao fim apaixonado, que não briga, que não tenha entre eles uma outra personagem para se meter no meio daquele amor e colocá-lo à prova? Ora, vamos combinar, né, gente, uma historinha como essa, no horário nobre, não daria ibope algum. Sei lá…, às vezes parece que vivemos tanto essas ficções, que fomos tão bem educados por elas, que crescemos com a malfadada ideia de que tudo deve ser posto à prova… Quem não andar sobre a brasa, nunca chegará ao paraíso… É sério isso? Ah, para… No caso da ficção da tv, do Netflix, dos livros, dos games de aventura, a gente até entende, ou melhor, tolera. Mas para a vida? Buscar esse eterno conflito? Essa eterna oposição? Não sei… Acho que o viver poderia ser um lugar mais interessante e mais leve se nós parássemos de tentar vivê-lo como se fôssemos os personagens desses roteirinhos clichês cheios de falas marcadas. Não estaria na hora de aprendermos a sermos felizes na felicidade, em vez de acharmos que o tamanho de nossa realização está proporcionalmente lincado aos caminhos tortuosos de nosso sofrimento? Não estaria na hora da gente entender que não somos chantilly, que precisa apanhar para ficar mais cremoso? Quem sabe o amor e a vida não estejam nos esperando justamente nesse lugar em que nossos chicotes estejam aposentados e que a única surra que nos espera é um daqueles cafunés, bem cafunezados, vindo das mãos de nossas amadas avós?

Crédito da Foto: Levi Guzman.

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