Nas penas de um olhar despenado

Uma pomba na frente de um caminhão. Ela parada. O motorista, sem paciência, buzina. A pombinha olha praquele monstro diante dela e, com uma indiferença pombalina, sai de seu caminho com os passos em câmera lenta. Uma pomba não entende das pressas humanas​, das pontualidades dos relógios, de nossas artificialidades… Uma pomba tem coisas mais preocupantes, como a própria vida por exemplo, para viver. Aí, me olhei como se eu fosse o passarinho no asfalto olhando pra mim. E fiquei um pouco triste. Eu estava saindo da minha sessão de análise. Parada na eternidade daquele sinal de pedestres, eu estava no processo interno do entender o quanto uma pessoa pode ser a sua pior pessoa. Porque só mesmo nós sabemos ser conosco tão cruéis. Somente nós sabemos como nos jogar tão baixo. É que por conhecermos exatamente nossos pontos mais fracos, nossos calcanhares de Aquiles, nossas vulnerabilidades, nós temos um trunfo nas mãos. Percebi o quanto eu era o meu próprio e maior boicote. Descaradamente eu me boicotava, mas cegamente eu me negava a ver. Porque o que nós nos fazemos de mal, é aquilo que nossos olhos menos olham. É aquilo que eles melhor fingem não ver. E foi preciso que eu olhasse uma pombinha existir para eu poder me projetar nos olhos dela. E, assim, neste me olhar por outros olhos, eu me vi. De longe. E vi que só nos olhando de longe é que podemos nos ver claramente. Limpos de nossa própria miopia. Límpidos de nossa triste mania de achar que temos a função de estar sempre na função de nos entristecer. Mas agora chega. Eu sou a pombinha. A pombinha que não liga pro tamanho desse caminhão na frente dela chamado vida. A pombinha que dita o ritmo de seus passos e que, na sua petulância indolente, decide caminhar como se o tempo não fosse nada mais do que uma invenção destinada a escravizar aqueles que nele acreditam. Eu sou eu e o meu tempo é meu. Eu sou a pombinha.

Crédito da Foto: Daniel Ruyter on Unsplash.

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