Eu me demito!

         Eu me demito! Eu me demito de todo e qualquer compromisso e ocasião. Eu me demito de toda obrigação, de toda falta de vontade, de toda ideologia, de toda teoria. Eu me demito de toda crença, de toda fé, de toda religião. Eu me demito dos times de futebol e dos partidos políticos.

         Eu me demito das manias criadas e hábitos adquiridos ao longo das repetições automáticas. Eu me demito de todas as horas do relógio, dos sonos noturnos, dos acordares diurnos. Eu me demito das leituras possíveis, das interpretações ambíguas, dos filmes empilhados sobre a cômoda à espera das horas vagas.

        Eu me demito da academia, da meia hora por dia sobre a esteira, das três séries de dez repetições para os bíceps, da merda da bunda empinada. Eu me demito de tentar ser parte de qualquer coisa, de compartilhar pensamentos, de defender causas válidas. Eu me demito de ser a foto na carteira de motorista. Eu me demito de ser motorista e me demito também da direção de toda e qualquer coisa ou pessoa, inclusive da minha. Eu me demito de atender o celular com “alô”.

        Eu me demito dos biquínis na praia, das calças jeans diárias, do uso de desodorantes, dos cortes de cabelo, dos banhos. Eu me demito dos banhos! Eu me demito do cheiro de limpeza, de separar o lixo reciclável, de arrumar a casa para as visitas. Eu me demito das visitas. Eu me demito dos produtos orgânicos, das vitaminas em cápsulas e dos mata-baratas.

       Eu me demito da boa e da má educação. Eu me demito de todo e qualquer código inventado e criado e regido para me reger. Eu me demito dos significados forjados para tentar uma compreensão construída. Eu me demito dos lugares conhecidos, das viagens a trabalho, dos intercâmbios, das línguas estrangeiras. Eu me demito dos gringos e do meu idioma nativo.

        Eu me demito da minha ignorância e, principalmente, da minha sabedoria popular. Eu me demito do senso comum, das frases feitas e da morte. Eu me demito das amizades falsas e verdadeiras, dos ideais, dos amores, eu me demito da família, dos laços de sangue, da genética, do compromisso com toda e qualquer aparência de humanidade. Eu me demito das leis protetoras dos animais, dos acordos internacionais de paz, das boas e das más ações para com as diferenças.

        Eu me demito da ética, da crítica, da filosofia, dos paradoxos existenciais, das camisas-de-força da cultura. Eu me demito dos numerais ordinários, dos elogios, dos gabaritos e das notas que reprovam. Eu me demito dos descontos, dos pagamentos a prazo, das promoções e participações nos lucros. Eu me demito dos talheres, das marcas, das cicatrizes e etiquetas. Eu me demito das lentes bifocais, da violência, das cercas-elétricas e dos alarmes anti-furto. Eu me demito das trancas e fechaduras, eu me demito das chaves.

       Eu me demito dos órgãos sensoriais, do café de depois do almoço, das necessidades fisiológicas. Eu me demito dos sistemas binários dos computadores, dos sistemas da internet, dos sistemas das redes sociais, dos sistemas. Eu me demito dos meus personagens reais, dos palcos, das agendas, dos calendários, das geladeiras que conservam tudo fresco. Eu me demito das frescuras e das pedras rústicas.

         Eu me demito do vício da beleza, do prazer e da obrigação de ter prazeres escondidos. Eu me demito de gostar dos domingos e feriados. Eu me demito de gostar do trabalho e me demito do trabalho. Eu me demito do capitalismo e do socialismo, eu me demito da moeda e das minas de diamante. Eu me demito de ser como devo e de como deveria ser. Eu me demito de ter que ser.

     Eu me demito! Eu me de-mi-to! O quê? Como assim?! Quer dizer que todo esse manifesto não me valeu de nada? Escrito no contrato? Que contrato? Ah, esse… Bom, se você diz que eu assinei um contrato do qual é impossível me demitir… Então, eu só posso fazer o que me resta: Eu me demito de me demitir.

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